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ONGs pedem multa diária de 10 mil euros a banco francês por financiamento irresponsável da Marfrig
Publicado em Repórter Brasil
Grupo vai à justiça na França para romper ou condicionar empréstimos do BNP Paribas ao frigorífico brasileiro a um plano de prevenção ao desmatamento e uso de mão de obra escrava, problemas recorrentes na cadeia da pecuária
Duas organizações que lutam por direitos socioambientais, a brasileira Comissão Pastoral da Terra e a francesa Notre Affaire À Tous, ingressaram hoje (27) na justiça da França para bloquear os financiamentos concedidos pelo maior banco daquele país, o BNP Paribas, ao frigorífico brasileiro Marfrig. Eles pedem que os contratos sejam rompidos e o banco multado em 10 mil euros por dia, a menos que os empréstimos sejam condicionados à aplicação de uma rigorosa análise de risco e a um plano de prevenção ao desmatamento e uso de mão de obra análoga à escravidão – problemas recorrentes na cadeia produtiva da pecuária e que atingem a companhia, acusada diversas vezes de abater gado criado em propriedades com essas irregularidades.
“Os fornecedores da Marfrig estão envolvidos em atividades que conduziram a um grave desmatamento da Amazonia, à apropriação ilegal de terras situadas em territórios indígenas e ao trabalho forçado”, acusam as ONGs, conforme comunicado enviado à imprensa. Parte das evidências que sustentam o processo francês foram extraídas de investigações da Repórter Brasil sobre os fornecedores do frigorífico, incluindo o flagrante de que a Marfrig abatia gado criado na Terra Indígena Apyterewa, em São Félix do Xingu, no Pará.
A acusação diz que o BNP Paribas violou a lei francesa do Dever de Vigilância (Loi sur le Devoir de Vigilance, instrumento também chamado, no Brasil, de devida diligência ou devido cuidado), que exige que as empresas que operam no país estabeleçam um plano robusto com medidas para identificar riscos e prevenir graves violações dos direitos humanos e do meio ambiente que possam resultar de suas atividades tanto na França como no exterior.
Ou seja, as organizações dizem que os financiamentos e serviços financeiros prestados pelo BNP Paribas à Marfrig estão tendo como consequência o desmatamento e o trabalho escravo no Brasil, sem que isso seja devidamente enfrentado pelo banco.
Esse tipo de cobrança por responsabilidade empresarial ampla é uma tendência na Europa, onde várias leis do gênero estão sendo aprovadas ou discutidas.
“As provas reunidas revelam o quão inadequadas são as medidas implementadas pelo BNP Paribas para que seja considerado um verdadeiro agente no combate ao desmatamento no Brasil”, avalia o diretor da Notre Affaire À Tous, Jérémie Suissa. “Embora se trate de desmatamento em território brasileiro, esta é uma discussão global: a Amazônia tem uma importância crucial para nossa trajetória climática coletiva, e o Brasil é o maior exportador mundial de carne bovina”, completa o executivo. A íntegra das reivindicações dos ativistas pode ser lida aqui.
Em resposta às denúncias levantadas pelas ONGs, o BNP Paribas detalhou algumas de suas políticas para o financiamento dos setores de pecuária e soja no Cerrado e Amazônia brasileiros, e destacou análises recentes que avaliam positivamente a estratégia da instituição para preservação da biodiversidade.
“Como o principal banco europeu, estamos significativamente expostos a possíveis ações judiciais de ONGs, embora, paradoxalmente, nossas políticas setoriais estejam entre as mais rigorosas do setor”, diz a nota, que defende ainda “o engajamento coletivo de todas as instituições financeiras envolvidas” na temática. “Simplesmente deixar de financiar esses atores não teria impacto positivo em suas práticas, pois ainda contariam com um número grande o suficiente de credores para suas atividades.”
Por sua vez, a Marfrig reforçou “seu compromisso de tornar sua cadeia de fornecimento completamente livre de desmatamento até 2025”, revelando que já monitora 100% de seus fornecedores diretos e 72% dos indiretos — “sendo que as áreas mais críticas (de risco alto e muito alto) já estão completamente rastreadas”. A íntegra dos esclarecimentos das empresas pode ser lida aqui.
Urgência e transparência
A abertura do processo judicial é um desdobramento da queixa pública e da notificação enviadas ao BNP Paribas pelo grupo de ativistas em outubro do ano passado. Em janeiro de 2023, o banco respondeu a esse ofício, mas segundo as organizações “a carta de 10 páginas estava repleta de greenwashing”. Na ocasião, o banco teria informado sua disposição de “suspender contratos com companhias que não apresentarem uma estratégia de desmatamento zero em 2025”.
A estratégia, porém, é considerada insuficiente pelas entidades, que pressionam para que o BNP exija imediatamente de seus clientes a rastreabilidade completa das cadeias de fornecimento de carne bovina no Brasil, incluindo não só as fazendas que vendem diretamente para os abatedouros mas também os chamados fornecedores indiretos – pecuaristas que repassam gado através de intermediários, e que ainda não são integralmente monitorados pelas empresas. Isso precisa ser feito “agora, não até 2025”, alegam os ativistas.
A CPT e a organização Notre Affaire à Tous também reforçam a necessidade de que esses dados sejam tornados públicos, “incluindo o nome da fazenda, o fazendeiro e seu número fiscal”. Essa é uma reivindicação antiga da sociedade civil no Brasil, onde diversas instâncias de governo tratam as guias que rastreiam a movimentação de lotes de bois (GTAs) como documentos sigilosos, embora desde 2015 haja uma recomendação do Ministério Público Federal para que elas sejam de acesso público. O MPF também ingressou com uma ação judicial para obrigar a publicação dos dados de trânsito de animais entre as fazendas.
“Para continuar a gerar lucros colossais através de graves violações [do meio ambiente e dos trabalhadores], a Marfrig tem impedido o acesso à informações referentes às suas cadeias de abastecimento, recusando-se a fiscalizar seus fornecedores indiretos responsáveis por abusos. Uma devida diligência razoável não pode permitir que o BNP tolere tal situação”, critica Xavier Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da CPT. “É por isso que estamos recorrendo aos tribunais franceses: para garantir que a lei seja forte o suficiente para assegurar que essas grandes corporações não consigam se eximir das alegações por meio de greenwashing”.
A Marfrig disse que não trabalhou para restringir o acesso público aos dados de transporte animal e que, pelo contrário, atua para que seja criada uma política pública com essas informações. “A Marfrig é totalmente favorável que os bancos de dados das GTAs sejam de acesso público e que as guias contenham também número do CAR. Isso permitiria que, a partir da GTA, qualquer organização do Brasil – privada, pública ou da sociedade civil – pudesse determinar os perímetros das fazendas percorridas por um lote de animais até o momento em que chegam aos frigoríficos”.
A expectativa das organizações é que, caso a justiça francesa admita a denúncia e dê sequência ao processo, o caso possa levar a uma mudança significativa no comportamento de corporações, com bancos negando serviços financeiros a indústrias violadoras de direitos humanos, ambientais e climáticos. Esta é primeira vez que um banco é denunciado por associação ao desmatamento e descumprimento da lei francesa da devida vigilância, segundo os autores. Na semana passada, um grupo de organizações levou o BNP aos tribunais na França por conta do financiamento que fornece a empresas que exploram combustíveis fósseis.
Conexões infames
Em novembro de 2022, a Repórter Brasil divulgou o resultado de uma investigação que detalhou a relação entre o BNP Paribas, o maior banco da Europa, e frigoríficos brasileiros, em especial a Marfrig. O relatório “Conexões Infames”, disponível em português e inglês, também demonstra o envolvimento de quatro grandes bancos franceses em uma operação de crédito para a Bunge. As transações foram feitas em momentos em que as empresas estavam no centro das atenções por alegações de que seus fornecedores haviam causado desmatamento.
O BNP Paribas é o principal investidor francês na pecuária brasileira, segundo dados compilados pela coalizão Florestas & Finanças, que mapeia os fluxos financeiros que abastecem os setores de commodities agrícolas e minerais. Os registros apontam que em 2022, o BNP Paribas possuía oito diferentes operações financeiras de aporte de recursos aos gigantes da carne que colocam em risco as florestas no Brasil, totalizando quase US$ 456,5 milhões – seis dessas transações tiveram a Marfrig como destinatária.
Entre os aportes feitos nos últimos anos à Marfrig, destacam-se duas operações de serviços financeiros em que o BNP Paribas atuou como aliado do frigorífico no lançamento de bonds no mercado: o BNP foi intermediário do negócio, apoiando a oferta para os clientes finais, aconselhando a empresa e desenvolvendo estratégias para que a venda seja bem-sucedida.
A mais polêmica dessas operações ocorreu em em 2019 e deveria marcar a entrada do frigorífico no universo dos green bonds, também conhecidos pela sigla ESG ou chamados de títulos verdes por possuírem metas ligadas à preservação da natureza. Nesta operação, o BNP Paribas desempenhou funções centrais, incluindo de consultor de sustentabilidade, embora o mercado tenha inicialmente rejeitado a ideia de que a Marfrig, com seu histórico de denúncias ligadas ao desmatamento, pudesse integrar a categoria de “finanças sustentáveis”, conforme revelou a agência Reuters em 2019.
“A primeira vez que examinamos a ideia de lançar um título verde tivemos que recusar”, admitiu à Reuters um banqueiro que participou do debate. “Achamos que não era possível”, complementou. Ainda assim, o bond foi lançado, com o apoio do BNP Paribas, mas ao invés de ser um “título verde”, que traria consigo muitas obrigações que o frigorífico não poderia garantir, eles decidiram incluir o lançamento na categoria “título de transição sustentável”, que refletiria os esforços da empresa para limpar sua cadeia de fornecimento em vez de ter metas objetivas a ser alcançadas.
O BNP Paribas tem publicado Planos de Vigilância anuais desde 2017, cumprindo o que determina a lei francesa do Dever de Vigilância, mas o relatório da Repórter Brasil mostra como há lacunas de informação nessas peças – algo que é reforçado na denúncia judicial de Notre Affaire à Tous e CPT à justiça francesa, que entre suas reivindicações incluíram a necessidade de “agrupar todos os elementos relativos à lei sobre o Dever de Vigilância, a fim de fornecer informações simples, claras, detalhadas e completas sobre sua implementação desta lei” e “pôr fim à ambiguidade sobre seus compromissos ambientais em seu plano de vigilância e em sua comunicação pública, o que contribui com o greenwashing”.
Correção: Esta matéria foi atualizada em 28/02/2023, às 09:18, para corrigir uma informação. A primeira versão deste texto informava que era a primeira vez que uma instituição financeira era levada à juízo na França por descumprimento da lei da devida diligência, mas no dia 23/02/2023, o mesmo BNP foi denunciado aos tribunais por financiar empresas de combustível fóssil, com base na mesma lei.