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Frigoríficos brasileiros negociaram bois com pecuaristas investigados por lavagem de dinheiro

Artigo originalmente publicado pela Repórter Brasil

Fornecedores também enfrentam acusações por desmatamento ilegal e fraudes em sistemas de controle sanitário. Conexão entre crimes financeiros e ambientais preocupa organizações que atuam no combate ao crime organizado

Nos últimos anos, grandes frigoríficos brasileiros – entre eles JBS, Marfrig e Minerva – adquiriram gado de grupos econômicos investigados não só por ilícitos ambientais, mas também por lavagem de dinheiro e outros crimes do colarinho branco. A conexão entre estes tipos de contravenção preocupa autoridades globais, já que os crimes contra o meio ambiente, segundo dados da Interpol, são hoje a terceira economia ilícita mais lucrativa do mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e o contrabando.

“A lavagem de dinheiro associada a crimes ambientais é um problema grave, muitas vezes ignorado pelos governos”, afirma Marcus Pleyer, ex-presidente do Grupo de Ação Financeira (GAFI) – organização intergovernamental formada por 39 países e considerada uma das principais instâncias internacionais no combate a crimes financeiros. Um estudo da entidade defende o aprimoramento não só de políticas públicas, mas também de iniciativas corporativas para monitorar fornecedores nesse contexto.

“As economias ilegais que destroem a Amazônia, como madeira, garimpo e gado irregular, possuem vários crimes atrelados. O papel da lavagem de dinheiro é dissimular a origem ilegal e criminosa do capital”, observa Melina Risso, diretora de pesquisa do Instituto Igarapé. Um estudo da organização aponta que houve suspeita de lavagem de dinheiro em 20% das operações da Polícia Federal realizadas na Amazônia Legal entre 2017 e 2021.

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Um exemplo dessas conexões está em uma investigação da Repórter Brasil de 2022 que levou a JBS a admitir a compra de quase 9 mil cabeças de gado com origem irregular. Os animais eram criados nas fazendas pertencentes, segundo as autoridades, a uma quadrilha de desmatadores em Rondônia liderada por Chaules Volban Pozzebon. Ele foi preso pela primeira vez em 2019, mas uma das empresas do grupo, registrada em nome de sua mãe, seguiu fornecendo gado para a Minerva até 2021 e para a JBS até 2022.

Fazenda de Chaules Pozzebon forneceu gado para Minerva e JBS mesmo após ele ser considerado “o maior desmatador do Brasil” (Foto: Nilo D’Ávila/Greenpeace)

Um relatório interno feito por autoridades envolvidas no caso cujo assunto é a “lavagem de capitais” mostra que essa empresa, a Agropecuária Rio Preto, fazia parte do “núcleo financeiro” de apoio ao criminoso. Analisando as remessas de dinheiro entre empresas e pessoas físicas da quadrilha, a Polícia Federal notou um “aumento dos repasses de empresas ligadas ao ramo da pecuária para a Agropecuária Rio Preto” no período em que as atividades ilegais da quadrilha se expandiram.

“Cabe destacar que quase 30% dos recursos saem da Agropecuária Rio Preto por meio de cheques, dificultando a [rastreabilidade da] real destinação do dinheiro. Por fim, apontamos que boa parte dos recursos da Rio Preto são originados das empresas e laranjas do grupo de Chaules”, muitos deles ligados à extração de madeira ilegal, concluem os investigadores.

Entre 2018 e 2022, a Agropecuária Rio Preto vendeu dezenas de milhares de animais para a JBS e outras centenas para a Minerva.

Procurada, a JBS afirmou que “todas as compras estavam de acordo com as políticas de compra responsável da Companhia, que cumpre rigorosamente o que determinam os protocolos de monitoramento vigentes”.

A Minerva não comentou o caso específico, mas assegurou que “quando é identificada qualquer irregularidade na atuação de um fornecedor, ocorre imediatamente o bloqueio do mesmo na base de dados da Companhia, impossibilitando qualquer comercialização com o nome do produtor e todas as propriedades vinculadas ao seu CPF”. A empresa também informou manter “uma rigorosa área de compliance”.

A defesa de Chaules Pozzebon negou “categoricamente a existência de qualquer tipo de esquema criminoso ou lavagem de dinheiro”. A íntegra das manifestações pode ser lida aqui.

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Ocultação de patrimônio

O empresário Luiz Pereira Martins Pires foi denunciado pelo Ministério Público Federal do Tocantins pelo crime de lavagem ou ocultação de bens em um esquema de “fraudes em licitações, desvios de recursos, recebimento de vantagens indevidas” que beneficiou sobretudo a família de um  ex-governador do estado. O caso ficou conhecido como a Operação Reis do Gado e tornou-se público em 2016.

Segundo as investigações, as movimentações bancárias de Pereira superavam em 240% os valores que ele declarou possuir à Receita Federal. Uma das evidências de irregularidades apontadas pelas autoridades foi a lucratividade média declarada de suas atividades rurais, de apenas 1% ao ano, “quando o normal para essa atividade é de 25% ao ano”.

Sua empresa Agropecuária Umuarama é apontada como tendo recebido repasses feitos direta e indiretamente pelo Estado do Tocantins em troca de “vantagens indevidas” dadas ao governador e seus familiares.

Esta empresa é uma das sócias da Agropecuária Pôr do Sol, que entre julho de 2022 e abril de 2023 realizou centenas de operações de venda de gado para a JBS. A Marfrig fez negócios diretamente com a Umuarama, enquanto Masterboi e Frigol receberam remessas de animais do próprio Pires.

O produtor já foi responsabilizado pelopossui histórico de uso de mão de obra de trabalhadores escravizados em suas propriedades, e soma mais de R$ 34 milhões em multas por desmatamento e outros crimes ambientais aplicadas pelo Ibama. Ele também é suspeito de ter sonegado R$ 13 milhões à Receita Federal.

Autoridades internacionais que combatem o crime organizado alertam para relação entre desmatamento e lavagem de dinheiro (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

A defesa de Pires informou que “não vai comentar as acusações, mas ressalta que não há condenação alguma e que devemos todos respeitar a presunção de inocência”.

A Repórter Brasil entrou em contato com o MPF solicitando mais informações sobre o caso envolvendo Pires, mas de acordo com a procuradoria o caso corre em segredo de justiça. 

A Marfrig confirmou ter negociado com a Umuarama Agropecuária, mas informou que à época “a propriedade encontrava-se em conformidade com os compromissos socioambientais da empresa”. O frigorífico também disse desconhecer o histórico de violações socioambientais de Pires, uma vez que ele “não consta em sua base de cadastro de fornecedores”, apenas a Umuarama, de propriedade de Pires.

A Frigol informou que utiliza “softwares jurídicos” para realizar “consultas em Diários Oficiais de todo o país, dos CNPJs e CPFs de sua base de fornecedores” e que, “no momento das aquisições, não havia processos em andamento envolvendo o produtor ou as empresas mencionadas”. A Masterboi informou que não tinha conhecimento das denúncias mencionadas. A íntegra das respostas pode ser lida aqui.

Sonegação e corrupção no Acre

Casos de lavagem de dinheiro na pecuária também podem estar conectados a outros tipos de contravenção – como, por exemplo, fraudes nos sistemas de controle sanitário do rebanho, com potenciais impactos na saúde de animais e dos consumidores de carne bovina.

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Um caso do gênero foi denunciado em 2021 pelo Ministério Público Estadual (MPE) do Acre. Os artífices do esquema seriam os irmãos Frank Vilela Barros e Arnaldo de Oliveira Barros Júnior. De acordo com as autoridades, Frank pagava propina para que servidores públicos forjassem Guias de Trânsito Animal (GTAs), documento obrigatório para o transporte de bovinos, para que ele pudesse transferir seu rebanho do Acre para o Amazonas sem o pagamento do imposto de fronteira, “burlando, assim, o sistema fiscal tributário e de vigilância sanitária estadual”, diz a denúncia. Segundo informou o MPE do Acre à Repórter Brasil, foi constatado que o gado era utilizado para lavagem do dinheiro excedente, decorrente da sonegação fiscal “em alguns casos”.

O esquema só se tornou público via denúncia do MPE em 2021 – até agosto de 2019, Júnior vendeu gado diretamente para a JBS. Além disso, os dois irmãos negociaram animais com outros pecuaristas, que por sua vez venderam para a JBS até dezembro de 2021, quando a denúncia já havia sido protocolada, potencialmente contaminando a cadeia produtiva do frigorífico com animais irregulares.

O advogado dos irmãos informou que o processo envolvendo seus clientes “está em fase de alegações finais” e disse que “a operação realizada em desfavor dos clientes, que culminou no presente procedimento, foi anulada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Acre, em Habeas Corpus impetrado pelo meu escritório”. A JBS informou que as compras estavam de acordo com as políticas da companhia. Leia a íntegra aqui.

Devida diligência é caminho para reduzir exposição

Segundo Melina Risso, do Instituto Igarapé, a pecuária se torna atrativa para a lavagem de dinheiro porque “não temos uma rastreabilidade inteira da cadeia produtiva”. “Há um processo no qual os frigoríficos olham apenas a última Guia de Trânsito Animal [documento emitido no momento de compra e venda de animais], mas não há monitoramento desde o início da vida” dos bois.

O relatório Lavagem de Dinheiro e Crimes Ambientais, da organização intergovernamental Financial Action Task Force (FATF), aponta que um dos caminhos para o combate à lavagem de dinheiro fruto de crimes ambientais, é “o fortalecimento do diálogo entre o poder público e o setor privado”. Isso deve ocorrer “no que diz respeito a informações sobre risco, e também como o compartilhamento de boas práticas de devida diligência nas cadeias produtivas e fluxos financeiros”.

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Os grandes frigoríficos do país possuem políticas corporativas que endereçam esse problema – com níveis distintos de detalhamento. O Código de Conduta de Parceiros de Negócios da JBS diz que esses parceiros “devem cumprir com as leis de Prevenção à Lavagem de Dinheiro”, mas não especifica como isso é fiscalizado pela empresa. Já o Programa de Compliance da companhia não aborda o tema de forma específica.

Já Marfrig e Minerva possuem diretrizes específicas para abordar a temática da lavagem de dinheiro. A Marfrig diz que negócios com “pessoas ou empresas conhecidas midiaticamente por envolvimentos em atividades ilícitas” precisam passar por um escrutínio mais rigoroso do que o comum. Já a Minerva lista uma série de situações que poderiam indicar possível lavagem de dinheiro em sua política para prevenção de crimes financeiros. A reportagem não localizou documentos ou políticas internas da Masterboi e da Frigol com esta finalidade.

Em 2024, a lavagem de dinheiro atrelada a crimes ambientais passará a ser uma das ações prioritárias da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCLA), uma rede de articulação com integrantes dos três poderes que discute e implementa boas práticas. “Provar a materialidade do crime de lavagem não é tão simples, porque você precisa ter outras estruturas juntos. É um crime de colarinho branco, é preciso provar a origem ilegal do dinheiro, e isso requer um processo probatório de mais fôlego”, conclui Risso.