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Empresários pedem fim de consulta prévia a indígenas, sociedade pressiona e mineradoras recuam
No início de julho, liderados pela Federação das Indústrias do Estado do Pará (FIEPA), entidades patronais enviaram um ofício a Jair Bolsonaro pedindo que o Brasil abandone a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989.
A convenção, ratificada em lei pelo Brasil em 2002 e 2004, garante aos povos indígenas e comunidades tradicionais o direito de consulta prévia, livre e informada. É um dos mecanismos internacionais mais importantes sobre um direito essencial à própria vida dessas comunidades.
Mesmo vastamente desrespeitado no Brasil, como várias matérias deste Observatório da Mineração demonstram, o direito de consulta prévia é o que garante a possibilidade de um povo indígena negar a instalação de empreendimentos que afetem negativamente a sua existência.
Sem ele, mineradoras, siderúrgicas e indústrias em geral podem simplesmente passar por cima de direitos socioambientais, contando com a força do lobby, do poder econômico e do cooptação de políticos em diversas esferas.
O ofício enviado a Jair Bolsonaro alega que o tratado internacional, é a “causa de inúmeros conflitos, constantes dúvidas e insegurança jurídica”.
“Fica clara a necessidade de deixarmos de ser signatários da Convenção OIT-169, por ser nefasta e inibidora do desenvolvimento nacional e por perpetuar nossos indígenas à situação de miséria e de constantes confrontos”, diz o texto.
Entre as organizações filiadas à FIEPA está a Simineral, associação das mineradoras que atuam no Pará.
Vale, MRN Mineração (controlada majoritariamente pela Vale), a francesa Imerys e a Alcoa são membros fundadores do Simineral. Entre os membros efetivos constam a norueguesa Hydro e a CBA, de alumínio. Mineradoras gigantes com vasto impacto socioambiental no Pará.
Eu procurei as empresas citadas para saber se elas concordavam com a posição da FIEPA, se defendiam que o Brasil abandone a Convenção 169 e se respeitam ou não os direitos indígenas nas áreas em que atuam.
Todas elas recuaram da posição expressada pelas entidades patronais lideradas pela FIEPA.
Em nota, o SIMINERAL disse que “o manifesto não reflete o posicionamento do setor mineral, que tem como compromisso promover a mineração sustentável e socialmente justa. O Sindicato reforça, ainda, que as atividades desenvolvidas pelas empresas associadas ao Simineral estão baseadas nos princípios da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP) e da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”.
As mineradoras citadas, por suas assessorias de imprensa, endossaram a posição do sindicato, afirmaram que são contra o ofício da FIEPA, que respeitam a Convenção 169 e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. A francesa Imerys, no entanto, foi a única a não responder ao pedido da reportagem.
Perguntado por mim se participou ou não da elaboração do texto do ofício e se não foi consultado previamente pela FIEPA, a assessoria do Simineral, após enviar a primeira nota, também preferiu se calar.
Procurada, a FIEPA igualmente ficou em silêncio. Procurei ainda o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que representa mais de 80% do faturamento do setor mineral no país e que tem entre as suas associadas boa parte das mineradoras reunidas no Simineral e que atuam no Pará. O IBRAM não se manifestou.
Longe de representar mera divergência ou “falha de comunicação” entre o setor empresarial, o ofício enviado a Jair Bolsonaro revela na verdade a articulação entre industriários, ruralistas e políticos para tentar aproveitar uma “janela de oportunidade” para forçar o Brasil a abandonar a Convenção 169.
Esse prazo, que ocorre de 10 em 10 anos, permitindo que os países deixem de ser signatários, vence em setembro.
Saída da Convenção 169 seria desastrosa. Motivos econômicos explicam divisão no empresariado.
Na análise de Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), o abandono da Convenção 169 não tem consenso nem mesmo entre os deputados da bancada ruralista e entre os deputados que representam a Amazônia.
O ofício da FIEPA seria algo relativamente isolado, em articulação com o deputado Alceu Moreira (MDB-RS) e as chances de que isso venha a ser aprovado são mínimas. “Não tem mais espaço para poder botar isso em votação e, portanto, essa janela cronológica vai se fechar logo mais sem que essa iniciativa prospere”, afirma Santilli.
A explicação para essa divisão, como a postura do Simineral e das mineradoras consultadas por esta reportagem ilustram, é simples: dinheiro.
Para Santilli, uma eventual saída do Brasil da Convenção 169 seria “um desastre diplomático em vários sentidos”
O motivo é que esse é o principal parâmetro do direito internacional que tem sido adotado inclusive por fundos de financiamento que exigem um mínimo de respeito formal a esses direitos para poder bancar qualquer grande empreendimento hoje no planeta.
Além disso, também seria um obstáculo adicional para a adesão do Brasil à OCDE e para que o acordo comercial do Mercosul com a União Europeia se concretize.
“É um tiro no pé do ponto de vista diplomático e só agravaria a situação de isolamento em que o governo Bolsonaro colocou o país nesses últimos anos. Por isso não tem sequer um apoio muito sólido dentro classe empresarial”, afirma Santilli.
Projeto de lei ruralista está por trás do ofício
Desde 2019 o governo de Jair Bolsonaro criou um “Grupo de Trabalho” para elaborar uma saída do Brasil da Convenção 169.
Segundo o discurso ultraliberal radical do atual governo, respeitar os direitos humanos e indígenas estaria “impedindo” a execução de obras de infraestrutura.
Em 2021, o deputado Alceu Moreira, ex-presidente da bancada ruralista, apresentou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, que tramita na Câmara, que autorizaria o presidente da República a denunciar a Convenção 169.
A reação foi forte. A própria ONU, em carta, afirmou que isso geraria uma perda “irrecuperável” e “um grande retrocesso” ao Brasil.
A Associação Brasileira de Antropologia considerou “inaceitável” o PL e a atitude do governo Bolsonaro.
“É isso que as iniciativas pretendem: estrangeirizar, privatizar e violar a função social da terra, Artigo 12 da Constituição Federal, entregando as terras indígenas para empresas multinacionais e estrangeiras, privatizando as mesmas”, afirma a carta da ABA.
Reportagem do De Olho nos Ruralistas afirma que o ofício enviado a Bolsonaro no início de julho foi encabeçado, principalmente, pelo latifundiário José Maria da Costa Mendonça, do Centro das Indústrias do Pará (CIP).
OAB Pará condena pedido dos empresários
Eu entrei em contato com a Ordem dos Advogados do Pará para saber qual a posição da instituição sobre esse pedido dos empresários do estado.
Rubens Motta de Azevedo Moraes Júnior, conselheiro da OAB Pará, lembrou que o Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1) já fixou entendimento pela imprescindibilidade da realização da consulta prévia em procedimento separado do licenciamento ambiental, dada a sua importância e essencialidade.
“A Consulta prévia é fase essencial de todo empreendimento que venha a causar impacto a comunidades indígenas, sendo o instrumento hábil a garantir o diálogo e participação dos povos indígenas, devendo ocorrer nas primeiras fases do planejamento. O retrocesso a respeito deste tema é um retrocesso para toda a sociedade brasileira”, disse Rubens Moraes.
Repostado de: https://observatoriodamineracao.com.br/empresarios-pedem-fim-de-consulta-previa-a-indigenas-sociedade-pressiona-e-mineradoras-recuam/