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Com financiamento millionario do Banco do Brasil, empresa ligada a « bet » desmatou terras indigenas no maranhao

No Matopiba, frente de expansão da fronteira agrícola sobre o Cerrado, empresas beneficiam-se de estagnação nas demarcações e de licenciamentos ambientais para avançar sobre terras indígenas.
Ao redor do pátio central, vias formam círculos concêntricos, atravessados pelas “ruas” que irradiam a partir do pátio, como raios numa roda de bicicleta. Ao longo dessas vias, casas de adobe e cobertura de palha abrigam as famílias Apãnjekra. É numa dessas casas que vive Pio Silveira, um dos anciões de seu povo.
Enquanto observa o cenário familiar, Pio reflete com apreensão sobre as transformações pelas quais seu território vem passando. A aldeia, que concentra as moradias e os espaços de convivência da sociedade Apãnjekra, é abraçada pela mata. Basta se afastar dela, porém, para ver as rápidas mudanças provocadas pela instalação, cada vez mais intensiva, de monocultivos, pastagens, carvoarias e infraestruturas particulares.
Embora uma parcela da terra Canela Apãnjekra tenha sido demarcada nos anos 1970, a maior parte do território, na região centro-sul do Maranhão, está, há anos, pendente de regularização. Pio conta que sempre circulou por toda a área que hoje aguarda demarcação.
“Antes, ainda não tinha esses fazendeiros que vêm de longe. Só tinha algum moradorzinho nesse lugar. Conheci os mais velhos. Já morreram todos, mas eu me lembro”, recorda-se, no seu português marcado pelo sotaque Canela. O contraste entre o passado e o presente pontua a reflexão de Pio sobre a terra onde nasceu e cresceu.

O ancião Pio Silveira reflete com apreensão sobre as transformações pelas quais seu território vem passando. Foto Tiago Miotto.
“Ao redor não tinha nada de outros de fora”, afirma. “Hoje, nesse lugar, tem muito invasor. Tem branco querendo botar roça na nossa área velha. Diz que não tem dono, mas nós somos os donos ainda. Já estão acabando é [com] tudo. Estão tirando madeira, matando os bichinhos que tem nesse lugar, caititu, veado, macaco, nambu. Quase não tem mais nada”.
Com um total de 301 mil hectares, a TI Porquinhos dos Canela-Apãnjekra forma, com as TIs Kanela Memortumré, do povo de mesmo nome, e Bacurizinho, do povo Tenetehar/Guajajara, um conjunto de territórios em situação semelhante, cuja demarcação é reivindicada pelos indígenas como forma de garantir a sobrevivência de suas futuras gerações.
As TIs Porquinhos e Kanela Memortumré localizam-se no Cerrado, enquanto a TI Bacurizinho abrange uma área de transição entre este bioma e o amazônico. “O Cerrado é considerado o berço das águas. É onde estão importantes rios e bacias hidrográficas como a do Mearim, do Corda, do rio Alpercatas”, explica Gilderlan Rodrigues, integrante da coordenação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Maranhão.

As terras indígenas Bacurizinho, Porquinhos e Kanela Memortumré estão situadas no Matopiba. Elaboração: Tiago Miotto.
No final da década de 1970, em meio à ditadura civil-militar (1964-1985), as três áreas tiveram uma pequena porção demarcada como reserva. Tais reservas, porém, foram delimitadas de forma arbitrária e grande parte do território ocupado e reivindicado pelos indígenas – a “área velha” à qual se refere seu Pio – ficou de fora. São essas áreas que hoje estão em processo de demarcação – e que têm despertado interesse de fazendeiros e empresários.
As terras indígenas estão dentro do Matopiba, acrônimo para o território que compreende os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Em 2015, o governo Dilma Rousseff estabeleceu, por meio de um decreto federal, o Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba. À época, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento tinha à frente a pecuarista Kátia Abreu, então senadora licenciada por Tocantins.
A região de abrangência do programa aumentou em 75% a área destinada a lavouras de soja entre 2014 e 2024 – ano em que concentrou quase metade de toda a perda de vegetação nativa no país, segundo o MapBiomas. Parte desta perda ocorreu na área não regularizada destas três terras indígenas, cujas demarcações estagnaram em estágio avançado. Dentro delas, empresários e fazendeiros têm derrubado grandes porções de mata para estabelecer lavouras, pastagens e construir ou ampliar estruturas como estradas, silos, carvoarias e até aeroportos particulares.
Avanço da soja no Matopiba
Área, em hectares, ocupada por lavouras de soja
Na região do Matopiba, houve um aumento de 75% da área destinada a lavouras de soja entre 2014 e 2024

Uma das empresas que aproveitou a paralisação das demarcações para explorar essas áreas é a FMJ União Agrícola do Nordeste. Apesar do nome, sua sede está localizada na rua Augusta, em São Paulo, a quase dois mil quilômetros da região onde concentra sua atuação.
A FMJ comprou, desmatou e vem adotando monocultivo em grandes áreas que transformou em fazendas no interior das TIs Kanela Memortumré e Porquinhos dos Canela-Apãnjekra. Contou, para isso, com licenças estaduais autorizando a derrubada de vegetação nativa no interior das TIs em processo de demarcação e com o financiamento milionário do Banco do Brasil.
Banco do Brasil: R$ 3 milhões para lavoura em terra indígena
Constituída em 2021, a FMJ União Agrícola do Nordeste tem entre as atividades econômicas declaradas à Receita Federal o aluguel, a compra e a venda de imóveis. A empresa e seus sócios e ex-sócios possuem em seu nome três propriedades com 20,1 mil hectares totalmente sobrepostos a terras indígenas: a fazenda Vale Verde, anteriormente conhecida como Brejo de Cima, com 2.441 hectares sobrepostos à TI Kanela Memortumré; a fazenda Baixa Verde, com 13.761 hectares totalmente sobrepostos à TI Porquinhos dos Canela Apãnjekra, adquirida em 2022 de uma associação de pequenos produtores rurais; e a fazenda Alpercatas, com 3.941 hectares, localizada na divisa entre as TIs Kanela Memortumré e Porquinhos dos Canela Apãnjekra, pertencente a Fabiano Anderson de Paula, sócio da empresa até 2024, segundo ele informou à reportagem. As propriedades também estão sobrepostas ao Parque Estadual do Mirador, unidade de conservação gerida pelo estado do Maranhão, que se sobrepõe parcialmente às duas TIs.

Em 2022, a FMJ obteve um financiamento de R$ 2,998 milhões do Banco do Brasil para a produção de 4.121 toneladas de milho transgênico na fazenda Vale Verde. Segundo dados do Banco Central, o plantio seria realizado no final de 2022 e a colheita, em junho de 2023 – dois meses antes do prazo final para a quitação do financiamento. No mesmo período, a área da fazenda Vale Verde foi quase totalmente desmatada: segundo registro do Prodes/Cerrado, sistema de monitoramento do desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre 2022 e 2023 a propriedade teve 2.279 dos 2,4 mil hectares derrubados. Já em 2024, o Prodes registrou que a área da fazenda Baixa Verde, adquirida pela FMJ em 2022, teve 1.020 hectares desmatados. Questionado pela reportagem, o Banco do Brasil informou que “possui um processo robusto e completo para identificação de situações desta natureza” e afirmou que “o financiamento está fora da terra indígena homologada Kanela”. A instituição financeira informou que sua análise considerou apenas a delimitação oficial da terra indígena homologada, “não havendo qualquer irregularidade na concessão do financiamento”. A sobreposição da propriedade financiada com a TI Kanela Memortumré, delimitada em 2012 pela Funai, não foi mencionada na resposta. O banco informou seguir as determinações do Manual de Crédito Rural do Banco Central do Brasil, responsável por regular os financiamentos realizados com recursos públicos e privados do Plano Safra. A norma proíbe a concessão de crédito para imóveis rurais total ou parcialmente inseridos em terras indígenas homologadas ou regularizadas, mas permite o financiamento a propriedades em territórios indígenas que ainda não passaram pela homologação, caso das TIs Porquinhos dos Canela-Apãnjekra e Kanela Memortumré. Leia a íntegra da resposta do Banco do Brasil aqui. O processo demarcatório de uma terra indígena segue um rito que começa com os estudos multidisciplinares de identificação e delimitação, a encargo da Funai, que resultam num relatório. Quando este relatório é publicado pela presidência do órgão indigenista, a terra indígena passa a ter uma delimitação oficial; é a situação em que se encontra a TI Kanela Memortumré, delimitada pela Funai em 2012 com 100 mil hectares. A etapa seguinte, depois de respondidas eventuais contestações ao estudo da Funai, é a declaração da terra pelo Ministério da Justiça, confirmando os limites identificados pelo órgão indigenista; é a situação da nova demarcação das TIs Bacurizinho, declarada em 2010 com 134 mil hectares, e Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, cuja portaria declaratória, publicada em 2009 pelo MJ, encontra-se suspensa por decisão judicial. Por fim, ocorre a colocação de marcos físicos, a homologação pela presidência da República e a regularização, com a retirada dos ocupantes não indígenas e o pagamento das eventuais indenizações. Muitos processos administrativos de demarcação de terras indígenas permanecem vários anos estagnados nas etapas anteriores à homologação. É o caso destas três terras indígenas, que aguardam há mais de uma década a conclusão de seus processos demarcatórios.
Licenças para desmatar
A atuação de empresas como a FMJ e os atos contraditórios de órgãos federais e estaduais ajudam a entender por que estas TIs têm registrado nos últimos anos as maiores áreas desmatadas entre terras indígenas do Cerrado. O desmatamento se concentra nas partes não regularizadas dessas terras – ou seja, áreas já reconhecidas como terras indígenas, mas ainda não totalmente protegidas como tais. Juntas, as três TIs não regularizadas perderam 33,9 mil hectares de vegetação nativa desde 2015, ano da criação do Plano de Desenvolvimento Agrário Matopiba. Em 2024, a parte não regularizada da TI Porquinhos foi a terra indígena com maior área desmatada do bioma, com perda de 5,84 mil hectares, segundo dados do Prodes. A área regularizada da TI Porquinhos, no mesmo ano, registrou apenas 19 hectares desmatados, segundo o Prodes.
Desmatamento nas Terras Indígenas Porquinhos, Kanela e Bacurizinho
Desde o ano de criação do Plano de Desenvolvimento Agrário Matopiba, em 2015, a porção não regularizada das Terras Indígenas (TIs) Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, Bacurizinho e Kanela Memortumré perdeu 33.884 hectares de vegetação nativa – mais da metade de todo o desmatamento acumulado nestas áreas desde 2001, que soma 60.387 hectares. As áreas regularizadas, por outro lado, tiveram 751 hectares desmatados desde a criação do Matopiba.

Apesar de significar a devastação de terras já reconhecidas oficialmente como de ocupação tradicional indígena, o desmatamento destas áreas não é necessariamente irregular. Então sócio da FMJ, Fabiano Anderson de Paula, obteve da Secretaria de Meio Ambiente do Maranhão (Sema-MA) ao menos duas licenças de autorização para atividade agropecuária e supressão de vegetação nativa nas fazendas Baixa Verde e Vale Verde. Em agosto de 2021, o empresário obteve autorização para a derrubada da vegetação na fazenda Vale Verde, localizada dentro do perímetro da TI Kanela Memortumré. Em novembro de 2023, recebeu da secretaria licença ambiental para exercer atividade agrossilvipastoril na fazenda Baixa Verde, que fica dentro da TI Porquinhos. Questionada, a Sema afirma que as licenças e autorizações expedidas para as propriedades da FMJ em 2021 “foram emitidas em gestões anteriores e encontram-se vencidas, portanto, sem qualquer efeito. Já as autorizações concedidas em 2023 foram suspensas cautelarmente pela própria Sema, assim como o CAR vinculado, antes que produzissem quaisquer efeitos práticos no meio ambiente”. A afirmação do órgão, no entanto, contrasta com os dados do Prodes e do MapBiomas, que registraram o desmatamento de cerca de mil hectares na fazenda Baixa Verde de 2023 para 2024. O ex-sócio da FMJ afirma que a supressão da vegetação foi realizada com a “licença devidamente obtida junto à Sema”, e que no local foram “plantados inicialmente 1.000 hectares de arroz”, colhido no início de 2025. A secretaria garante que “atualmente, não há qualquer área com autorização válida para atividades agropecuárias ou supressão de vegetação” nas propriedades da FMJ e afirma que “não concede licenças ou autorizações ambientais em áreas localizadas dentro de Terras Indígenas homologadas”. A Sema-MA não se posicionou em relação às TIs não homologadas, mas já delimitadas ou declaradas, como no caso das áreas sobrepostas pelas fazendas da FMJ. A íntegra da resposta da Secretaria de Meio Ambiente pode ser lida aqui.
Até 2024, ao menos, a Sema-MA vinha concedendo licenças ambientais para supressão de vegetação nativa sobre terras indígenas não homologadas. Em informe técnico de abril daquele ano sobre o desmatamento na TI Porquinhos, a Funai registrou que havia solicitado o cancelamento imediato de todas as licenças e autorizações concedidas pela Sema-MA dentro de TIs, independente de sua fase administrativa. Para o órgão indigenista, a posição da Secretaria do Meio Ambiente conflita com a decisão do STF que determinou, em 2022, a proteção de todas as terras indígenas brasileiras, “independentemente da fase em que se encontra o procedimento de regularização”. A decisão foi tomada em uma ação que buscou garantir a proteção de povos indígenas durante a pandemia. Além das licenças para desmatamento, a FMJ União Agrícola obteve obteve junto à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), no final de 2022, o registro de uma pista de 1,4 km de extensão na fazenda Vale Verde, sobreposta à TI Kanela Memortumré – a mesma financiada pelo Banco do Brasil. Procurada, a FMJ não respondeu aos pedidos de posicionamento da reportagem.
Sobreposições de mapas e normas
No informe técnico sobre o desmatamento na TI Porquinhos, a Funai também apontou que, após a publicação da Instrução Normativa (IN) 09/2020, durante o governo Bolsonaro, houve um aumento da devastação da terra dos Canela Apãnjekra. A normativa estendeu ao órgão indigenista a distinção entre terras indígenas homologadas e não homologadas, liberando sobre estas últimas a certificação de propriedades privadas pelo Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Incra, exigência para transações envolvendo imóveis rurais. A IN 09 permitiu a certificação e a comercialização de dezenas de propriedades sobre essas três terras indígenas, que estiveram entre as mais afetadas pela medida. Em 2021, o Cimi identificou que pelo menos 83 propriedades privadas haviam sido certificadas sobre a porção não regularizada destas terras, cobrindo o equivalente a 46% de sua área. A medida foi derrubada em vários estados por ação do Ministério Público Federal (MPF), inclusive o Maranhão, e revogada em 2023, já sob o governo Lula, pela nova presidenta da Funai, Joenia Wapichana. As certificações, no entanto, permanecem válidas – e a pressão sobre as terras indígenas continua. “Com a chegada desses grandes empreendimentos, principalmente ligados ao agronegócio, temos percebido uma mudança significativa na região. Novas áreas foram abertas, vendidas e adquiridas por essas empresas, que têm expandido as suas posses”, afirma Gilderlan Rodrigues, do Cimi. Procurado pela reportagem, o empresário Fabiano Anderson de Paula, ex-sócio da FMJ, diz considerar-se “vítima de insegurança jurídica” que lhe causou “prejuízos imensuráveis”. Ele afirma que vendeu sua participação na FMJ União Agrícola do Nordeste para saldar as dívidas, depois que os Cadastros Ambientais Rurais (CAR) dos imóveis foram bloqueados. “Quando foram adquiridas eu não possuía conhecimento algum sobre essa sobreposição, pois a mesma não estava averbada em nenhum órgão público consultado”, relata o empresário. Os bloqueios ocorreram após decisões judiciais e ação do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), que era responsável pela gestão do CAR até julho de 2023, e sob o governo Lula, voltou a integrar a estrutura do Ministério do Meio Ambiente (MMA). O SFB informou ter identificado 20 mil sobreposições de imóveis a 5 milhões de hectares de Terras Indígenas. Após a verificação, esses imóveis passaram da situação de “ativos” para “pendentes” no sistema SICAR. “Adquiri e investi em terras, fiz financiamentos bancários em meu nome e, quando ia começar a trabalhar, o governo começou a falar que havia sobreposição com essas ampliações não homologadas”, diz o ex-sócio da FMJ, que contesta na Justiça o bloqueio dos imóveis no SICAR. As TIs Porquinhos dos Canela-Apãnjekra e Kanela Memortumré, às quais as propriedades FMJ estão sobrepostas, encontram-se oficialmente delimitadas desde 2007 e 2012, respectivamente. As propriedades sobrepostas a elas foram compradas pela FMJ em 2021 e 2022. “Se constasse de qualquer diligência ou matrícula a sobreposição, óbvio que não teria investido nem adquirido a propriedade”, afirma o empresário. Quanto à derrubada de vegetação nas fazendas, ele garante que “jamais tomaria qualquer ação sem a autorização governamental necessária”.

Las Vegas no Brasil
O quadro societário da FMJ incluía também o casal de empresários André Feldman e Juliana Alves Feldman, mortos num acidente de helicóptero em São Paulo, em 16 de janeiro deste ano. O caso teve grande repercussão, não só pelas consequências trágicas, mas também porque Feldman era um conhecido empresário de um segmento em ascensão no Brasil: o das apostas esportivas, as “bets”. Ele era sócio e presidente da Big Brazil, que em 2025 passou a integrar o grupo das 78 empresas atualmente licenciadas para atuar no mercado das apostas no país. Sediada em Americana, no interior de São Paulo, a Big Brazil é operadora da marca Caesars Entertainment, conhecida por seus cassinos e hotéis em Las Vegas. Em entrevistas, Feldman afirmava que pretendia posicionar a empresa no mercado como a “Las Vegas no Brasil”, voltada “ao público de alta renda”. Procurada, a Big Brazil disse que não possui relação com a FMJ nem com setor de agronegócio. Feldman se apresentava publicamente como um representante do mercado de apostas e um defensor da regulamentação do setor. Ele foi o primeiro presidente da Associação Nacional de Jogos e Loterias, a ANJL, que representa diversas “bets” que atuam no Brasil. O empresário também ocupava cargos de direção e administração em pelo menos outras 12 empresas que atuavam em áreas como consultoria e gestão financeira, empreendimentos imobiliários, exploração de jogos e apostas, produtos lotéricos e até de um hangar para voos executivos. Ele ingressou na FMJ em 2023, ao adquirir parte da cota de sua esposa, Juliana Alves Feldman. Segundo Fabiano Anderson de Paula, um dos ex-sócios da empresa, André e Juliana Feldman eram seus “amigos pessoais e investidores” e “nunca tiveram a pretensão de explorar atividades rurais, simplesmente acreditaram em meu projeto como beneficiamento e valorização imobiliária e entraram como sócios”. Paula afirma, ainda, que “todos os investimentos, empréstimos e financiamentos já haviam sido feitos antes da própria regulação das casas de apostas, que só começaram a funcionar com autorização após 2025”. A íntegra da resposta de Paula está aqui.
Oportunidade financeira.
A aquisição de terras dentro do perímetro não regularizado das TIs Bacurizinho, Kanela Memortumré e Porquinhos por empresas das regiões sul e sudeste como a FMJ parece indicar o quanto a compra e a exploração de terras na região passou a ser vista como uma oportunidade financeira lucrativa. Para Marta Inez Medeiros Marques, professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), a demanda crescente por terras em zonas de expansão do agronegócio, como o Matopiba, reflete um movimento especulativo que envolve a entrada de capitais de outros setores e regiões e afeta a dinâmica de valorização das propriedades rurais. “Há efetivamente uma valorização, para determinadas áreas, principalmente essas que ainda estão num estágio mais nativo e que são desmatadas”, avalia a professora, que pesquisa o agronegócio no Cerrado e da relação entre capital financeiro, terra e natureza. “Esse processo é apresentado como um beneficiamento que a terra sofreu, podendo ser precificada a um valor maior do que se ela estivesse no seu estágio nativo, mais natural”. No caso do Matopiba, explica a professora, esse movimento acontece “numa região em que outras fazendas estão sendo também transformadas e existe uma expansão de atividade econômica, o que justifica o aumento da demanda por terra. É o conjunto de coisas que acaba resultando nesse preço final aumentado, que é atraente e que hoje acaba sendo um tipo de investimento que está drenando capitais vindo de grupos e empresas de outras origens”.
Pressão sobre os indígenas
Junto com o fortalecimento do poder econômico das empresas na região, houve um aumento da pressão sobre os indígenas, “com o crescimento da degradação ambiental e com a possibilidade de grandes conflitos”, aponta Rodrigues. A pressão é sentida na pele por quem vive no território. Um dos moradores é Antonio Iogo, vice-cacique da aldeia Porquinhos. “Os brancos, não sei de onde estão vindo, outras pessoas que dizem que a terra é deles. Não, é do índio. Aí outro vem e compra a terra”, preocupa-se. “A água do rio Corda, na nascente, tem desmatamento e o rio está diminuindo. Estamos preocupados, estamos querendo a demarcação dessa terra para parar com isso”. Nas três terras indígenas, cercas são erguidas, estradas são abertas e placas com nomes de fazendas e de seus donos se sucedem, indicando a negociação de terras. Em muitas destas placas, os nomes das empresas e propriedades são acompanhados por avisos como “proibido caçar e pescar” e “proibida a entrada sem autorização” – inscrições que indicam a tensão existente entre o modo dos indígenas de ocupar os territórios que entendem como seus e a lógica privada que se impõe sobre estas áreas.
Há circulação intensa de caminhões carregados de grãos, gado, madeira e carvão. Muitas das estradas que cruzam estas áreas são cobertas de piçarra, um tipo de cascalho abundante na região, e estão em bom estado de manutenção, já que são utilizadas para o escoamento da produção das fazendas. À margem delas, é comum que a vegetação típica do Cerrado seja bruscamente interrompida por carvoarias, extensas lavouras de soja e até “picadas” recém-abertas em meio à mata, com estacas delineando novos limites. “Eles estão acabando com tudo. Eles desmatam, botam agrotóxico, vai matando tudo ali. Tanto faz: árvore, mato, brejo, peixe, pássaro”, lamenta Carloman Kanela, liderança da TI Kanela Memortumré. “Sem território, a gente não tem educação, saúde, ‘vivimento’. Então, nós precisamos que nosso território seja demarcado”.
“Alguns não queriam vender”
A maior área adquirida pela FMJ na região, e que está totalmente sobreposta à TI Porquinhos, pertencia a uma associação de pequenos agricultores formada por moradores de comunidades locais. “A gente trabalhava. Tinha umas vaquinhas, botava para comer lá na beira do rio Alpercatas, que é a Baixa Verde”, relata Maria*, de 76 anos, que vive há décadas com seu marido entre as comunidades de Catingueiro e Galheiro. Segundo ela, a associação, formada por cerca de 70 famílias, obteve do governo estadual a titulação coletiva da propriedade há mais de trinta anos. Em maio de 2022, a FMJ adquiriu da Associação dos Produtores Rurais da Baixa Verde a área de 13.761 hectares, que passou a ser denominada Fazenda Baixa Verde. A certidão de compra e venda do imóvel registra que a transação custou à empresa R$ 4,626 milhões, o equivalente a R$ 336 por hectare. “Alguns não queriam vender, eu mesma era uma. Hoje já aliviou, mas doía no peito. O quanto a terra é valorosa, e você dar por tão pouco…”, lamenta Maria. Ela e o marido foram parte das famílias vencidas na votação da associação que decidiu pela venda da área. “Hoje, estamos passando necessidade dessa área para nossas pequenas criações”
Reivindicação histórica
Além da proximidade entre elas e da demora na conclusão de suas demarcações, as TIs Kanela Memortumré, Porquinhos e Bacurizinho possuem em comum um mesmo contexto histórico, marcado por expulsões violentas e pela redução de seus territórios a reservas no período da ditadura. Por essa razão, nos anos 2000, passaram por um novo processo demarcatório, desta vez com os devidos estudos técnicos para a delimitação correta das áreas tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, como determina a Constituição Federal de 1988. A história de violência e esbulho permanece viva na memória dos indígenas. No caso da TI Porquinhos, um massacre no início do século 20 resultou na destruição da aldeia localizada na região conhecida como “travessia”. “Nossos bisavós, eles andavam [por aqui]. Tem várias aldeias velhas por aí. Temos a aldeia da Rancharia, tem a aldeia Travessia, onde foi massacrado nosso povo. Isso tudo aqui é nossa terra”, conta Antonio Iogo. “O nosso povo vai aumentar. Nós queremos demarcar para defender, porque o branco não respeita”. O crescimento populacional e a falta de espaço e recursos para garantir a subsistência e a preservação do modo de vida Kanela, registrados nos relatórios de identificação e delimitação das TIs Porquinhos e Kanela Memortumré produzidos pela Funai há quase duas décadas, ainda geram preocupação entre os indígenas. Neles, o antropólogo Jaime Garcia Siqueira, que coordenou os estudos, destaca a importância das atividades rituais e o consumo coletivo de carne de caça para os povos Timbira. Entre estes povos, “é a atividade ritual que determina o ritmo e o tempo das atividades de subsistência”, observa o antropólogo. “Com a pressão dos moradores não-índios sobre a área Canela, a escassez de caça tem aumentado e consequentemente, tem prejudicado a realização de muitos rituais”, alertava o relatório da TI Porquinhos já em 2007. Quase duas décadas depois, a pressão sobre o território avançou e a disponibilidade de caça e de espaço para as roças é ainda menor. “Quando eu subi na ladeira, caçando, e olhei, não está mais como estava antes. [Agora o que tem] é campo muito limpo. As máquinas arrasaram tudo”, lamenta José Lino Kanela, liderança da aldeia Escalvado, na TI Kanela. “Eu sou um caçador”, define-se. “Eu ando e só vejo o rastro dos mortos. A gente não está roubando o rebanho deles, mas eles estão roubando tudo que é nosso. E a aldeia está ficando mais pobre que a dos antigos”.
Ofensiva no Congresso, impasse no STF
Os indígenas tinham a expectativa de que a mudança no poder Executivo, em 2023, com a vitória de Lula, ajudasse a reverter este cenário. No entanto, impasses no STF e uma ofensiva ruralista no Congresso Nacional têm favorecido a dilapidação dos seus territórios. No caso de Porquinhos, a portaria declaratória da TI foi anulada pela Segunda Turma do STF em 2014, sem que os indígenas fossem ouvidos no processo, a pedido das prefeituras de Fernando Falcão, Formosa da Serra Negra e Barra do Corda, que abrangem a terra indígena. As administrações municipais sustentaram seu pedido com base na tese de que uma terra demarcada não poderia ser “ampliada”. Assim como a chamada tese do “marco temporal”, julgada inconstitucional pela Suprema Corte em 2023, esta tese também foi considerada inconstitucional pelo STF no mesmo julgamento, que teve repercussão geral. Apesar disso, ambas as teses foram inseridas no ordenamento legal pelo Congresso com a Lei 14.701/2023, aprovada pelo Senado na mesma semana do julgamento do STF. O povo Apãnjekra Canela recorreu da decisão que anulou sua terra e aguarda a análise de seu recurso, sob relatoria da ministra Cármen Lúcia, há mais de dez anos. Na avaliação de Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Cimi e um dos advogados da comunidade no STF, a demarcação da TI Porquinhos sequer é uma “ampliação”: trata-se, na verdade, da primeira demarcação desse território feita de acordo com os critérios técnicos exigidos pela Constituição de 1988. “Foram usados, na delimitação da reserva criada na década de 1970, critérios muito mais políticos do que jurídicos. Ficaram de fora muitos lugares que são necessários à reprodução física e cultural do povo Canela”, aponta Modesto. O advogado também critica o fato de que os indígenas não foram ouvidos no processo que anulou a portaria declaratória. O direito de comunidades indígenas serem parte de processos judiciais foi uma das importantes conquistas dos povos na Constituição de 1988 – e o desrespeito a esse direito já resultou na reversão de outras decisões negativas aos povos indígenas pelo próprio STF, destaca Modesto. Assim que foi promulgada, a Lei 14.701 foi questionada junto ao STF por povos e organizações indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e partidos políticos. Sem analisar os pedidos para que a lei fosse suspensa, o ministro Gilmar Mendes, relator das ações, estabeleceu uma “comissão especial de conciliação” para discutir o tema. Sem participação dos indígenas, que se retiraram, a comissão foi encerrada em 2025 com uma “proposta de alteração” da Lei do Marco Temporal cuja destinação ainda é incerta.
A insegurança jurídica causada pela vigência da Lei 14.701 tem servido de justificativa para que o governo federal não dê andamento às demarcações. Essa demora tem efeitos especialmente graves no caso das TIs Porquinhos dos Canela-Apãnjekra e Kanela Memortumré. Um diagnóstico sobre esses territórios produzido pelas organizações Jerivá Socioambiental e Centro de Trabalho Indigenista (CTI) em 2023 destaca que as consequências do modelo de produção de commodities adotado no Centro Sul maranhense serão de longo prazo. Dada a importância do Cerrado para o abastecimento de algumas das principais bacias hidrográficas da América do Sul e o sensível equilíbrio de que depende o bioma, elas não ficarão restritas aos povos indígenas que vivem nestes territórios. “Já está acabando tudo, acabando com nossa caça miúda, acabando com buriti, pé de bacuri, pé de pequi, jussara, jatobá, esse desmatamento desse povo que vem de longe. Por isso que nós queremos a demarcação, há muito tempo que nós falamos. Estão demorando”, preocupa-se Pio Silveira.